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O Rapaz Calado, de Nick Antosca (2019)
O Rapaz Calado, de Nick Antosca (2019)

Aconteceu durante o seu segundo mês como professora. Tinha 23 anos e estava frustrada. Esperara acabar numa cidade, mas a Teach For America mandara-a para ali, para aquela pequena vila construída à volta de uma estação de caminho-de-ferro morta: Rexford, Virgínia Ocidental. Um outro professor dissera-lhe que o lema oficioso da vila era: "Colinas, Putas e Lojas de Álcool". Ela não tinha visto nenhumas putas, tanto quanto sabia, mas havia definitivamente colinas e lojas de álcool.

"Ok, malta", disse Julia aos seus alunos do quarto ano. "Acalmem-se e comecem a escrever as vossas histórias".

Ela sabia que tinha sorte. Tinha nascido com voz de professora. Confiante mas amável, agradável ao ouvido mas cheia de autoridade. Escutavam quando ela falava. Se não conseguias fazer com que escutassem, estavas morto.

Também era preciso outras coisas. Paciência. Uma boa memória de quem se tinha sido com aquela idade. Mas acima de tudo, tinha de se adorar os miúdos - sofrer quando eles tinham dificuldades ou quando se passava algo mau em casa - ficar feliz por eles quando eram bem sucedidos ou quando se riam descontroladamente de uma piada estúpida. E ela adorava. Adorava os miúdos dela. 

Só não sabia bem se adorava ser professora. Especialmente aqui, nesta vila.

Ela própria tivera alguns professores, particularmente um na escola secundária, que lhe disse que ela podia ser algo. O que ela queria agora era ser esse tipo de professora: uma que fazia a diferença para os seus alunos, ou pelo menos para alguns deles. Mas a maioria dos miúdos de Rexford não parecia querer nada diferente. Já estavam ansiosos para desistir da escola secundária aos dezasseis anos.

"A vossa história pode ser uma fábula, uma invenção ou um conto de fadas", disse ela à turma. "Mas lembrem-se, o que têm todas as histórias?"

"Menina Grey! Eu sei!", disse o Travis, com o braço a disparar para cima. "Um início, um meio e um fim".

Travis era barulhento e mandão, o tipo de miúdo que diziam sempre na brincadeira que se tornaria professor. Vivia em Ballard Creek, um subúrbio mais ou menos novo fora de Rexford, cheio de viajantes de D.C. que viviam lá porque os impostos eram mais baixos. Julia tinha ido lá no mês passado para levar um miúdo a casa depois de ele perder o autocarro. Os relvados estavam bem arranjados. Ela falara brevemente com a mãe do miúdo, que estava um pouco bêbada. A mãe apontara para o cimo da rua para todas as árvores jovens nos seus canteiros de terra inchados.

"Árvores pequeninas", dissera. "Todas plantadas ao mesmo tempo. É por isso que são todas do mesmo tamanho. Não há nada que eu odeie mais do que árvores pequeninas".

Julia acenara educadamente com a cabeça. Coitado do teu marido...

Distinguia-se logo os miúdos de Ballard Creek dos miúdos de Rexford. Tinham roupas mais limpas. Não eram mais inteligentes, mas tinham pais que os obrigavam a fazer os trabalhos de casa.

"Isso mesmo", disse ela a Travis. "Um início, um meio e um fim".

Menina Grey. Parecia uma luva que não servia.

 

 

*

 

Quando tocou a campainha do recreio, saltaram dos assentos para fazerem fila à porta.

Exceto o Lucas Weaver. Continuou na carteira, a escrever febrilmente.

Todos os miúdos de Rexford eram pobres. Mas Lucas parecia mesmo pobre. Tinha cabelo escuro e mãos com crostas. O par de calças de ganga Wrangler que usava todos os dias tinha sido remendado tão descuidadamente que ela se perguntava se tinha sido ele mesmo a fazê-lo. 

"Ok, malta", disse ela à fila de crianças barulhentas de nove e dez anos, "pouco barulho. Eu disse uma fila, não um circo".

Eles sossegaram, e ela deixou-os ir. Outros professores já estavam lá fora para os vigiar no recreio.

Ela e Lucas estavam sozinhos. A sua secretária estava coberta de planos de aula inacabados e trabalhos que ela precisava de classificar, e parte de si queria dizer-lhe para ir lá para fora para ela poder fazer o seu trabalho. Mas sentou-se ao lado dele.

"Lucas, não queres ir ao intervalo?"

Ele não ergueu o olhar. "Estou a escrever o meu conto de fadas".

"Está bem", disse Julia. Viu que ele não estava apenas a escrever, estava a ilustrar. As ilustrações eram detalhadas e vivas. Ela não queria interromper - ele estava tão absorto! - por isso observou. Os ombros dele eram frágeis, os ossos como um pássaro e distintos. Comeria o suficiente? Tomaria o pequeno-almoço de manhã?

Ela tinha feito perguntas sobre ele. Vivia nos Mudders, que era o que chamavam a uma fileira de casas para lá dos carris do comboio. O verdadeiro nome era Perlmutter Road. Era a parte mais pobre da cidade.

Nos seus dois meses de experiência, Lucas fora o mais difícil de criar uma ligação com ele. Não tinha amigos. Se nos aproximássemos dele, ele parecia retirar-se subitamente, como se tivesse medo de cheirar mal. Na verdade, ele tinha um leve odor, mas não era nada repugnante, exatamente. Cheirava a folhas húmidas, ao ar livre, e a... animais de estimação. Pelo de animal molhado.

"Tens um cão ou um gato em casa?", disse ela.

Lucas parou de escrever. A pergunta pareceu incomodá-lo. "Não".

"Oh", disse ela. "Alguma vez perguntaste à tua mãe e ao teu pai se podias ter um?"

Ele continuou sem olhar para ela. "Vivo só com o meu pai. E o meu irmão mais novo."

"Não sabia que tinhas um irmão", disse ela. "Como se chama?"

"Todd".

"Que idade tem? Anda aqui?"

"Tem aulas em casa", disse Lucas.

Ela viu que ele tinha quase terminado outra ilustração. Era um animal grande, corpulento e escuro. De repente, ele levantou-se, como que envergonhado, e amarrotou as páginas.

"Que estás a fazer?", disse ela.

Ele correu para o balde do lixo, rasgando as páginas, e deitou fora os pedaços. Olhou para ela com uma expressão tímida e envergonhada que a fez ficar solidária com ele. Mas depois fugiu lá para fora. Ela observou através da janela enquanto ele se agachava na beira do recreio, com os braços à volta dos joelhos, a ver os outros miúdos.

 

*

 

Ela estava na sala dos professores quando um professor do terceiro ano chamado Bret Goucher a abordou.

"Que é isso?"

"Uma história que um dos meus miúdos desenhou", disse Julia. Estava a colar a história de Lucas com fita-cola como um puzzle. Pensou que Bret iria embora passado um momento - ele era como uma versão mais velha dos tipos na faculdade que pareciam pensar que se rondassem tempo suficiente, podias espontaneamente tornar-te namorada deles - mas em vez disso, ele sentou-se.

"Que miúdo?"

"Lucas Weaver".

Bret deu uma risada suave e compreensiva.

"É uma causa meio perdida, não é? Nunca o tive na turma, mas acho que é um bocado estranho".

"É inteligente", disse Julia. "Será que o pai faz ideia?"

Bret disse: "Estive na lavandaria há uns meses - a lavandaria automática, junto ao Pauls' Pizza? E o miúdo, Lucas, entra com uma braçada de lençóis, e vai a uma máquina, mete os lençóis lá dentro, mete vinte e cinco cêntimos... e depois despe-se até ficar de cuecas e mete a roupa toda lá dentro, também! Então fica ali sentado, todo nu à exceção das cuecas do Batman, a ver as roupas a andarem à volta, como um cão". Deu outra risada.

"Não tem nenhumas outras roupas para usar", disse Julia baixinho. 

"Sabes", disse Bret, "também fiz o Teach for America quando tinha a tua idade. Puseram-me em Baltimore. Foi tipo o The Wire. Aquelas pessoas dão aos filhos os nomes mais loucos. Tinha um par de gémeos na minha turma. Um chamava-se Vossalteza e o outro era o Vossamajestade..."

"Tenho de ir", disse Julia, levantando-se. Tinha acabado de colar a história.

 

 

*

 

Julia leu a história de Lucas em casa. Estava a alugar uma casinha de campo na periferia da cidade. A sua casa estava aninhada atrás de uma casa maior - uma das casas mais bonitas e bem cuidadas nos arredores de Rexford - onde vivia a senhoria, uma sexagenária divorciada chamada Elaine Fielding, A casa de campo era sossegada e acolhedora.

A história de Lucas chamava-se "Os Três Lobos".

Às vezes os miúdos reescreviam histórias que conheciam. Escreviam sobre o Homem de Ferro ou o Jack Sparrow. Ela pensou no início que Lucas apenas recontara Cachinhos Dourados, com lobos.

Mas não havia Cachinhos Dourados na história dele. Havia apenas os Lobos, que viviam juntos numa gruta sobre uma cidade. O Lobo Grande, o Lobo do Meio, e o Lobo Pequeno. O Lobo Grande era um bruto. O Lobo Pequeno era tímido. O Lobo do Meio era o pacificador.

"Todos os dias o Lobo do Meio saía e apanhava peixes para todos. Mas um dia voltou e o Lobo Grande e o Lobo Pequeno tinham raiba. E só queriam ir à cidade e comer pessoas".

Então o Lobo do Meio bloqueou a entrada da gruta com rochas e prendeu os outros dois lá dentro, onde rosnavam todo o dia e toda a noite. E todos os dias apanhava peixes para eles, que enfiava entre as rochas para saciar a sua fome. E todas as noites dormia junto à entrada para garantir que eles nunca saíam.

Lucas desenhara cada um deles. As ilustrações eram rápidas mas irrefletidamente confiantes, como os esboços de um pintor. A coisa mais extraordinária era o quanto eram realistas, exceto que o Lobo do Meio tinha uma cara estranhamente humana e o Lobo Grande tinha olhos estranhos. O Lobo Pequeno era apenas uma cria.

Era uma história estranha para um miúdo escrever. Ele tinha dito que vivia com o pai e o irmão mais novo, Todd. Então o Lobo Grande era o pai, o Lobo Pequeno era Todd, e o Lobo do Meio - aquele que tratava de tudo, que mantinha a paz - era Lucas.

Ela supôs que o pai de Lucas era provavelmente um alcoólico, talvez dos maus. E Lucas era provavelmente um daqueles miúdos que tem de cuidar do pai - limpar, deitar o irmão nas noites em que o Pai chegava tarde ou adormecia cedo. E aquela coisa sobre o Lobo Pequeno ter raiba... Teria Lucas medo porque o irmão, provavelmente mais novo e mais impressionável, admirava o Pai? Poderia um dia tornar-se ele? Estaria ela a interpretar demasiado? Foi para a cama com a história às voltas na cabeça. Formas de lobos arrastaram-se pelos seus sonhos, carrancudos, com pelo preto emaranhado. 

 

*

 

Julia passou pela Rite Aid a caminho da escola e comprou camisolas e meias.

Antes da aula, viu os registos de Lucas na secretaria. A sua morada estava registada como Perlmutter Road, 18. O único progenitor registado era o pai, Frank. Frank. Ela imaginou um homem grande, bruto, com um nimbo de hálito a álcool. 

"Porque está interessada no miúdo Weaver?", perguntou a secretária, Carole.

Julia fechou o ficheiro. "A Sra. Parsons mencionou uma vez uma coisa do Conselho Escolar, um programa de arte para alunos dotados. Programa de Artes do Condado, ou..."

"Programa de Mentoria de Artes do Condado de Jefferson", recitou Carole. "É dinheiro federal. Pagam a professores especiais, trazem-nos duas vezes por semana depois das aulas. Trabalho individual".

Julia pensou: Isso seria perfeito para o Lucas.

 

*

 

Ao almoço, Julia manteve Lucas para trás e deu-lhe as roupas. Duas camisolas cinzentas baratas e seis pares de meias brancas com riscas vermelhas. Ele pareceu não acreditar no início. Não queria largá-las.

"Vão servir-me", disse ele, hesitante.

"Ótimo", disse Julia. Depois disse: "Gostas de desenhar, não é? Gostas de arte?"

"Gosto de desenhar coisas".

"Soube de um programa especial para miúdos como tu", disse ela. "Ficarias depois das aulas e trabalharias com um professor especial de artes para desenho. Falei sobre isso com um homem do Conselho Escolar. É algo que queiras fazer?"

Nessa altura, ela viu algo nos olhos dele. Entusiasmo ou esperança, uma daquelas coisas silenciosas e vibrantes.

"Sim", disse ele. 

"Ótimo!", disse Julia. "Só preciso que o teu pai assine uma autorização. Também gostaria de falar com ele sobre isso, e..."

A cara de Lucas mudou. Uma luz apagou-se.

"Na verdade, não quero", disse. Levantou-se e dirigiu-se apressadamente à porta.

"Espera", disse Julia. "Lucas, poderias..."

"Mudei de ideias", disse ele, fugindo. Ela ouviu as pancadas bruscas e ecoantes das suas sapatilhas no corredor.

 

*

 

Ela pensou nisso nessa noite, ao fazer o jantar na casinha de campo. Conseguia ouvir os cães de Elaine - um mastim e um dálmata - a ladrar da casa principal. Deve ser um coelho no quintal. Pensou em como Lucas reagira de forma tão visceral à ideia de ela poder falar com o pai dele. Teria vergonha da ideia de ela conhecer... Frank?

Não, vergonha não. Houvera medo. Ele pensou que Frank o castigaria por ser distinguido como dotado.

No dia seguinte ao almoço, ela tentou voltar a falar com Lucas, mas ele resistiu, dizendo apenas: "Mudei de ideias! Não quero fazê-lo!"

Mais tarde, ela ligou para o número de telefone de casa dele - o que estava registado no ficheiro - mas obteve "Este número não está em serviço..."

Isso incomodou-a. Ela perguntou à Sra. Simms, a professora que tivera Lucas no ano passado, se ela alguma vez conhecera Frank. A Sra. Simms pensava que não, e ficou admirada por Julia pensar que Lucas era dotado. A Sra. Simms pensara que ele era "deficiente".

Nenhum dos outros professores alguma vez tinha visto o pai de Lucas.

Bem, é isto que estou cá para fazer, não é?, pensou Julia. Se ninguém nesta escola se esforçou para ajudar este miúdo, ou contactou Frank Weaver, mais vale ser eu.

 

*

 

Ela não disse a Lucas. Perlmutter Road era a última paragem no trajeto do autocarro, por isso ele seria deixado às 4. Se ela saísse da escola de imediato, conseguia chegar a casa dele antes das 3:40, o que lhe daria vinte minutos para falar com Frank Weaver.

Era sexta-feira. Ela saiu logo depois da última campainha. Conduziu pela cidade, para lá de casas abandonadas e cães grandes acorrentados a postes, para lá da Lavandaria Automática da Judy e do Paul's Pizza. Depois por uma estrada esburacada até à estação de comboio morta. Atravessou os carris e conduziu por uma estrada curta, ladeada de bosques, que se tornou outra estrada. As casas afundadas que a alinhavam fizeram-na pensar em caras desdentadas. 

Isto era Perlmutter Road. Os Mudders. A casa de Lucas, número 18, era uma armadilha cinzenta de dois andares. O alpendre estava afundado. O acesso estava tão coberto de vegetação que não havia acesso.

Julia estacionou na rua. A casa ainda era pior de perto. As casas vizinhas, pelo menos, mostravam sinais de vida. Brinquedos nos alpendres, cortinas nas janelas. Mas o relvado da frente de Lucas não era cortado há anos. E as janelas estavam entaipadas.

Teria ela cometido um erro?

Olhou em volta. Estava silencioso. Conseguia ouvir insetos. Pássaros no bosque. Cães. Não havia cães. Parecia que um em dois quintais em Rexford tinha um cão. Mas aqui não. Não nos Mudders. Lembrou-se de como Lucas cheirava. A animais de estimação. Mas ele dissera-lhe que não tinha nenhuns.

Alguém estava a olhar para ela.

Não sabia há quanto tempo ele ali estava. Um jovem - um miúdo - no alpendre do lado. Tinha os olhos vazios de um viciado em oxicodona. Idade da secundaria.

"Que está aí a fazer?", disse ele.

"Preciso de falar com o Sr. Weaver", disse Julia. A sua voz soava demasiado aguda. Fraca. Voltou a tentar. "Frank Weaver. Sabe se ele está aqui?"

Ele continuou a olhar. Se calhar não era assim tão miúdo. Se calhar tinha vinte e poucos, ou mais velho. "É melhor afastar-se daí", disse.

"Sou da escola", disse ela. "Sou professora do Lucas".

"Bem, eu disse-lhe", disse ele. Entrou em casa. Ela pensou em bater-lhe à porta, perguntar-lhe se ele os conhecia. Mas tinha medo dele. Também tinha medo de Frank Weaver. Tinha medo de perder a coragem a qualquer momento.

Subiu ao alpendre de Lucas e tocou a campainha.

Nenhum som vindo de dentro. Bateu na porta com a mão aberta, hesitantemente no início, depois com mais força.

"Olá? Sr. Weaver?"

Nada. E no entatno tinha uma sensação desconcertante de alguém do outro lado da porta, e ciente da presença dela. Voltou a bater na porta.

"Olá? Está aí alguém?"

Ainda nenhum som. Ela recuou. Reparou em algo - as janelas estavam entaipadas do lado de fora. Aproximou-se da mais próxima. O entaipamento tinha sido feito ao acaso, com as tábuas desalinhadas e os pregos espetados em ângulos bizarros. 

Era como, pensou ela, se uma criança o tivesse feito.

Havia brechas entre as tábuas. Ela inclinou-se, olhando para a escuridão interior, deixando os olhos ajustarem-se às sombras lá dentro.

Uma sombra tinha a forma de um homem.

O seu couro cabeludo ficou frio. Ele estava de pé a quatro metros de distância, a olhar na direção dela. Ou se calhar é só um casaco pendurado numa porta. Talvez seja só... Não. A figura na escuridão moveu-se ligeiramente. Não se aproximou. Apenas mudou o peso. Estava simplesmente ali de pé - e a odiá-la. A irradiar malevolência.

Depois a paralisia desapareceu e ela recuou com um solavanco como se se tivesse queimado. Ficou na beira do alpendre, abalada. A luz do sol na nuca fê-la sentir como uma menina, uma criança medrosa e com uma imaginação selvagem.

Estás só com medo. Não viste... aquilo.

A vizinhança estava vazia e silenciosa. Moveu-se de novo para a janela e espreitou por entre as tábuas. A... figura... tinha desaparecido. Ainda havia sombras no mesmo sítio, mas eram indistinguíveis das outras sombras.

 

*

 

Controla-te.

Viera aqui para fazer algo - ajudar um miúdo que precisava de ajuda. Saltar com sombras não era forma de resolver isso.

No entanto, algo estava errado aqui. Aquela sala de estar não parecera inabitada.

Julia desceu os degraus do alpendre e voltou a erguer o olhar para a casa. E agora reparou numa coisa - as janelas do andar de cima não estavam entaipadas. Havia apenas vidro escuro.

Caminhando cautelosamente em volta da casa - deveria fazer isto? - espreitou para o quintal das traseiras. A relva estava alta. Havia um corte de material azul dentro dela, brilhante como um corta-vento: uma tenda. Uma tenda azul afundada, como que para uma viagem de campismo.

A aba da frente estava aberta. Ela aproximou-se dela e ajoelhou-se para olhar para dentro. Viu invólucros de doces, embalagens de manteiga de amendoim vazias. Lençóis com um herói de banda desenhada. Thor. Era Thor. Lençóis de criança. E viu canetas e lápis e papel A4, do tipo que se usava nas impressoras da escola. E livros da biblioteca - livros da biblioteca da escola. Sounder Ponte para Terabítia.

E no canto, um pequeno monte de meias brancas com riscas vermelhas familiares.

Lucas estava a viver na tenda.

Pobre miúdo. Onde estava Frank Weaver? O pai de Lucas abandonara-o aqui? Teria ido beber uma noite e nunca viera para casa?

Voltou a contornar a casa, com intenção de ir embora - e depois ouviu o autocarro da escola. Instintivamente parou, meia escondida.

Lucas e dois rapazes mais velhos saíram. Os rapazes mais velhos faziam algazarra ao descerem a rua.

Ela viu Lucas caminhar sozinho na direção da casa. Foi pelo outro lado, para o quintal das traseiras. Ela voltou a contornar para o ver entrar na tenda. Um momento depois, ele saiu com os lençóis do Thor embrulhados nos braços. Transportou o embrulho de volta pelo outro lado da casa. Ela observou-o subir a rua, a sua figura pequena a ficar mais pequena. Para a lavandaria automática.

Ele estava por sua conta. Ela teria de falar com os serviços infantis, envolver o condado. Assim que ele desapareceu, ela dirigiu-se ao carro. Mas uma sensação de formigueiro na nuca - como um lenço de seda a roçar nela - fê-la virar-se e olhar de novo para a casa. Era uma concha, um sarcófago.

Uma forma moveu-se na janela do andar de cima.

 

*

 

Uma silhueta de criança - mais pequena do que Lucas. Talvez cinco anos de idade. Depois desapareceu. Estivera a chupar os dedos.

Todd. O irmãozinho.

Ela caminhou de volta para o alpendre. Tocou a campainha e chamou: "Todd?"

Nenhuma resposta. Mas ela tinha-o visto. Ele estava lá dentro.

Ela bateu na porta. Silêncio. Voltou a espreitar por entre as janelas entaipadas. Escuridão. Depois, suave como um gato, uma pequena figura passou a correr.

"Todd!", gritou ela. "Sou a professora do Lucas, da escola. Podes deixar-me entrar?"

Nenhuma resposta. Tentou a porta da frente. Trancada.

"Todd? Preciso de falar contigo".

Ela ouviu algo, como um gatinho a miar, vindo de dentro. Queixoso. Enquanto ficava mais alto, soava menos como um gatinho, mais como uma criança. Transformou-se num soluço. Um som de desolação e medo.

Tenho de entrar ali. Tenho de ajudar aquela criança.

Deu pancadas na porta. "Consegues ouvir-me? Abre a porta!"

O choro parecia vir das profundezas da casa, talvez da cave. Tinha uma qualidade distante, de pânico, quase histérica.

Julia atirou-se contra a porta. Algo terrível estava a acontecer dentro daquela casa. Algo acontecera àquela criança. Uma espécie de loucura apoderava-se dela.

"Estou a ir!"

A porta não cedeu. Olhou freneticamente em volta e viu algo afiado na relva: um longo pedaço de metal, enferrujado, algo de um carro. Trouxe-o para a porta, espetou uma ponta entre a porta e a ombreira, e puxou. Com um estalido, a porta balançou para dentro, a fechadura velha sendo arrancada da madeira seca, quase podre.

Imediatamente, o choro parou.

 

*

 

Ela olhou para a escuridão fétida e estagnada e escutou. Tinha o coração a martelar; sentia-o na garganta e nos ouvidos e por baixo do peito esquerdo.

A febre que se apoderara dela - o desejo frenético de entrar na casa, ajudar a criança - diminuiu um pouco. Será que ouvi mesmo?

Sim. Tinha ouvido. E tinha visto a silhueta. Havia uma criança nesta casa e ele tinha estado aterrorizado - talvez com dores.

Então porquê agora o silêncio?

Ela entrou. O ar estava... pesado. Segurou a gola da camisola por cima da boca. Tinham apodrecido coisas aqui. Havia animais nas paredes, ou alguma coisa, e um tinha morrido.

"Todd?"

A voz dela morreu no ar. Estava num hall de entrada estreito. À esquerda ficava a cozinha... pratos antigos no lava-loiça... tudo coberto de uma película de fuligem. À direita, contudo, ficava a sala de estar. A sala através da qual vira correr a pequena figura.

Entrou. O tapete era castanho-acinzentado. Garrafas de álcool no canto. Excrementos de rato por todo o chão. Um calendário dos Redskins de lado na parede, amarelo. Numa mesa de centro estava uma taça de musgo negro que fora sopa.

Ao lado da taça estavam três pequenas estatuetas de barro vermelho. As estatuetas tinham cabeças desproporcionalmente grandes. Animais de algum tipo, talvez cabras.

"Todd?", voltou ela a chamar.

Um símbolo tinha sido besuntado na mesa, há muito tempo, numa substância escura. Uma estrela de cinco pontas. A estrela tinha outras marcas, desenhos que pareciam olhos com pupilas pretas retangulares, como olhos de cabra. Um em cada ponta da estrela.

Uma sensação de pavor apoderava-se dela. Como se se tivesse enganado de uma forma desastrosa. 

Não devia ter vindo aqui.

Depois a sua pele comprimiu-se em saliências. Voltou a senti-la, a sensação de alguém perto. Aquela presença que imaginara - não, não imaginei - do outro lado da janela entaipada. A sua malevolência, o seu ódio puro e fulgurante.

Aquela presença estava atrás dela. A emanar um desejo esmagador de realizar atos de crueldade. De mutilar, de profanar, de inalar a agonia dos outros.

Ela olhou para trás de si. Nada. Nada. Queria fugir da casa. Mas outra sala, mais escura - a sala para a qual correra a figura pequena - esperava além da sala de estar. Ela deu um passo em direção a essa porta. Dava para uma sala de jantar, onde não chegava a luz. Não entrou, só olhou para dentro.

Dois cadáveres.

Um homem e uma criança pequena, enrolados no chão.

Estavam mortos há muito tempo. Estavam secos como folhas, quase mumificados, e havia algo errado com as suas caras...

A sensação de uma presença atrás dela tornou-se subitamente insuportável, como se só agora se inclinasse sobre o seu ombro, com o grande queixo apoiado na sua clavícula, a respiração no seu pescoço. 

"MAIS UM PASSO."

Um sussurro - ela deu um solavanco com tanta força que foi mais como uma convulsão. Num pânico irracional, fugiu da casa. No relvado, procurou desajeitadamente o telemóvel, a ofegar. Sem serviço.

É a casa que está a fazer isto, pensou histericamente. O que quer que está na casa. É tão forte que está a bloquear o sinal. 

Ia a meio da da rua antes de conseguir barras.

 

*

 

O nome do xerife era Drew Eastin. Era um quarentão magro e de ar pensativo com pés de galinha profundos e um meio sorriso calmo. Noutro dia, ela podia tê-lo achado atraente.

"Fique aqui", disse-lhe Eastin. Estavam a parar mais dois carros de patrulha. Era provavelmente metade da força policial de Rexford. "Vamos entrar e ver o que é o quê".

Ela esperou, entorpecida, junto aos carros da polícia. Estava sempre a ouvir aquela voz no ouvido, o sussurro áspero. Uma voz de homem, grosseira e insistente. O xerife entrou na casa com alguns delegados. Um voltou para fora. Tinha a cara pálida e brilhante e não parava de esfregar a boca.

Quando o Xerife Eastin apareceu, já não estava a sorrir. Parecia mais velho.

"Como você disse", disse-lhe. "Dois corpos. O laboratório criminal estadual vai dizer-nos ao certo, mas acho que é o Frank Weaver e o filho Todd".

"Não percebo. Porque é que o Lucas não disse a ninguém?", disse Julia.

"Provavelmente teve medo que o condado o levasse. Provavelmente viu isso acontecer a outros miúdos aqui". Olhou em volta. Alguns residentes estavam cá fora, a observar os carros da polícia. "Vou mandar o Kenny passar pela lavandaria automática e ir buscar o miúdo".

"Está bem", disse Julia. "Gostaria de ficar aqui até o encontrarem, se puder ser. Faz alguma ideia do que aconteceu? Como eles morreram?"

Eastin suspirou. "Se tivesse de adivinhar, diria que o Frank matou o filho, se calhar deu-lhe veneno de rato - há uma grande caixa lá dentro - e depois matou-se. O que aconteceu depois disso, não sei. Parece que não entra ali ninguém há um ano. Jesus".

"E o choro que eu ouvi? E a pessoa que julguei ver a mexer-se?"

Não julgaste. Viste.

Eastin lançou-lhe um olhar estranho. "Não há mais ninguém ali. Procurámos em todo o lado. O único sítio onde ainda não estivemos é a cave".

"Porque não?", disse ela, inquieta.

"Está trancada. Porta pesada. Estamos à procura de uma chave. Vamos mandar vir um serralheiro se não conseguirmos encontrar uma".

"Poderia estar alguém lá em baixo?"

"Se sim, estão calados".

Ele voltou a abanar a cabeça, e exalou lentamente. "Que foi?", perguntou Julia.

"Sou polícia há 25 anos. Vi algumas pessoas que morreram mais novas do que deviam. Mas ali dentro... algo não está certo".

Ela acenou com a cabeça. Ela sabia.

MAIS UM PASSO.

Eastin voltou relutantemente para a casa. Chegou uma carrinha de médico-legista. Dois homens de farda branca transportaram os sacos para cadáveres. 

 

*

 

Estavam a transportar o segundo saco para cadáveres - o pequeno - quando passos se aproximaram rapidamente atrás dela, suaves e crepitantes. Ela gritou ao virar-se...

Era Lucas. Tinha saído do bosque no cimo da rua; devia ter tomado um atalho, e a polícia não o tinha visto. Agarrando os seus lençóis, olhou com horror enquanto os corpos eram levados.

"O que estão eles a fazer?", perguntou numa voz aguda e abalada.

"Encontrámos o teu pai e o Todd", disse ela delicadamente. "Sabemos que tens estado sozinho. Vai ficar tudo bem. Nós vamos..."

"O que estão eles a fazer?"

"Lucas, há quanto tempo vives assim, sozinho?", disse ela. "Podes dizer-me isso? Quando aconteceu?"

Ele não pareceu ouvir. Deu alguns passos hesitantes, olhando com o que parecia incredulidade para o pequeno saco para cadáveres a ser carregado para dentro da carrinha.

"Eles tiraram-nos?", disse. "Vão levá-los?"

"Lucas", disse ela, "eles não vão levar-te a ti. Alguém vai..."

"Eles não podem fazer isso!"

A expressão na cara dele era de partir o coração. Uma expressão de desespero. De alguém a quem não restam opções.

Nenhum miúdo devia ter de se sentir assim.

Ela ficou à frente dele para lhe bloquear a visão. Pôs-lhe as mãos nos ombros e olhou-o nos olhos.

"Vai ficar tudo bem", disse-lhe. "Sei que isto deve ter sido difícil - não imagino o quanto - mas estou aqui para ti. É uma promessa. Percebes?"

O seu estado de choque pareceu diminuir, e um lampejo de compreensão surgiu-lhe nos olhos. Ele acenou com a cabeça.

"É uma promessa", disse Julia de novo.

Muito baixinho, ele disse: "Tenho medo".

Ela abraçou-o. Não conseguiu evitar.

 

*

 

Julia falou baixinho com Eastin, fora da audição de Lucas. O xerife tentara fazer algumas perguntas delicadas ao miúdo, mas mal teve uma resposta.

"O que lhe vai acontecer?", perguntou Julia.

"Primeiro, temos de resolver a situação dos familiares. Talvez vá viver com uma tia ou avó".

"E se não tiver uma?"

"Bem", disse Eastin desconfortavelmente, "depois vemos quais são as outras opções. Há boas famílias adotivas por aí".

"E este fim de semana?", perguntou Julia. "Onde é que ele vai dormir?"

Era claramente uma questão que o xerife ainda não considerara. "Bem", disse por fim, "não sei se, mesmo que o levássemos a Morgantown, teriam um lugar preparado para ele esta noite. Eu vou... vou ver se conheço alguém que pode..."

"Eu posso", disse Julia. "Ele pode ficar comigo. Alugo a casinha de campo atrás da casa da Elaine Fielding. Há espaço".

"Bem, ótimo", disse Eastin. "Quer dizer, é professora dele".

 

*

 

Ela levou Lucas para a casinha de campo. A viagem toda, ele olhou pela janela, perscrutando as árvores como se procurasse algo. Muito fracamente, à distância, havia sirenes. Rexford ficava num vale, e o som propagava-se.

"Queres ouvir rádio?", perguntou Julia, porque não sabia o que mais dizer. O que se podia dizer a um miúdo que tinha passado o que ele tinha? Tudo o que se podia fazer era tentar fazê-lo sentir-se seguro no momento.

Não importa o que eu faça, ele vai precisar de muita terapia.

Lucas não pareceu ouvi-la. Continuou a olhar pela janela. De vez em quando torcia-se no assento para olhar por cima do ombro, como se algo pudesse estar a segui-los pela estrada.

 

*

 

Elaine, a sua senhoria, estava a ir buscar os caixotes do lixo de plástico ao fundo da entrada da garagem quando eles chegaram a casa. Elaine era alta, com cabelo cinzento curto, um riso rouco, e um sorriso sereno e distraído. Sorria agora, limpando uma mão numa T-shirt desbotada que dizia Vandals, que Julia tinha quase a certeza que era uma banda antiga. Também tinha quase a certeza que Elaine fumava muita erva. Elaine inclinou-se para a janela para dizer olá.

"Ei, quem é este?", disse ela. "Um dos seus alunos?"

"Este é o Lucas", disse Julia. "Vai passar cá o fim de semana. Certo, Lucas?"

Lucas estudou Elaine. "Sim", disse.

"Lucas, a Elaine vive na outra casa, aquela". Julia indicou-a.

Elaine parecia um pouco confusa, mas acenou com a mão. "Está bem, então. Lucas, quero que faças uma coisa por mim, está bem?"

"O quê?", disse ele ainda mais baixinho.

"Sê realista. Podes fazer isso?"

"Sim".

"Ótimo", disse Elaine. "Então não tens de te preocupar com nada".

Julia passou pela casa principal e estacionou junto à casinha de campo. Estava a escurecer. Quando estava lá dentro, Lucas fechou a porta da frente e trancou-a. Depois andou às voltas e trancou as janelas todas.

 

*

 

"Queres ir jantar pizza?", perguntou ela. Tentava mantê-lo ocupado, se não entretido. Tinha acabado de pôr Gru o Maldisposto no portátil - não tinha TV - e estavam no sofá a ver. Ele estava sentado com os braços envolvidos em volta dos joelhos.

"Não quero sair", disse ele. "Tens alguma coisa para comer aqui?"

"Não temos de sair. Podemos encomendar", disse Julia, à procura do telemóvel. "O que gostas? Queijo? Salpicão?"

Encomendou duas pizzas grandes do Paul's, o sítio local, pensando que podia pôr sobras no frigorífico. Que miúdo não gosta de pizza ao pequeno-almoço? Quando se voltou a sentar com ele, voltou a reparar na sua fragilidade, nos seus ombros como um pássaro. O seu desejo de o ajudar, de o proteger, ganhou mais força do que nunca. Agora que sabia como ele tinha estado a viver, perguntou-se se ele sofria de subnutrição grave.

Ele devia ser visto por um médico. Devia ter sido levado direto para um hospital.

Ela não ia tornar a noite de Lucas ainda pior levando-o às pressas para o War Memorial Hospital neste momento - uma hora de distância - logo quando o filme estava a ficar bom e tinham pizza a caminho. Mas podia garantir que algo ficava marcado para amanhã. Foi para a cozinha com o telemóvel. O Xerife Eastin tinha-lhe dado o seu número.

O telemóvel dele tocou muitas vezes antes de ele atender.

"Sim, quem fala?" Ele parecia quase ofegante e havia uma sirene, alta, no fundo. Ela tinha a impressão de que ele estava a conduzir.

"É a Julia Grey. Queria pedir-lhe - acho que o Lucas devia ver um médico, ser examinado. Acho que está subnutrido e, tendo em conta como tem vivido..."

"Sim, sim, claro. Trato disso amanhã".

"Está tudo bem?", perguntou ela. "O que se passa?"

"Vou para Ballard Creek. Parece que algumas pessoas se feriram lá esta noite - talvez com gravidade". A sua voz soava áspera. Não o homem confiante que aparecera nos Mudders algumas horas antes. "Menina Grey, tenho de ir, mas há outra coisa que lhe devia dizer... Entrámos na cave. Vou pedir-lhe que guarde isto para si. O que encontrámos lá em baixo foi, hã, muitos animais. Mortos".

"Que tipo de animais?", disse ela baixinho, para Lucas não ouvir.

"Cães principalmente, cães e gatos. Alguns deles tinham coleiras. Estavam, ah - nunca vi nada assim. Estavam meios... torcidos. Tipo com o pescoço e o... corpo partido".

"Partidos?", disse ela.

"Como se alguém os tivesse torcido como toalhas e partido tudo dentro deles", disse Eastin. "E... alguns deles não estavam lá em baixo assim há tanto tempo. Alguns deles só lá estavam... talvez há uma semana. Ou menos".

Julia olhou para a sala de estar. Lucas estava a ver o filme.

"De que tamanho eram?", disse debilmente. Ouviu o que parecia um rádio de polícia a crepitar.

"Pequenos. Gatos e cães pequenos". Ele sabia o que ela estava a pensar. Disse: "Menina Grey, não sei o que aconteceu àqueles animais naquela cave. Mas se não quiser esse miúdo em sua casa esta noite, eu percebo - traga-o para a esquadra. Percebe?"

"Eu volto a ligar-lhe", disse ela baixinho.

 

*

 

Desligou. Olhou de novo para a sala de estar. Lucas já não estava a ver o filme. Estava a olhar para ela.

Ela lembrou-se da forma como ele recuava sempre na escola se alguém se aproximasse dele, como se tivesse medo de cheirar mal. Mas ele não cheirava mal...

Cheirava a animais.

tentou torcê-los como toalhas

partiu tudo dentro deles

Julia olhou para os seus braços magros, as suas pequenas mãos brancas.

Ele não poderia fazer isso. Pois não?

Aproximou-se lentamente dele. Ele continuava a observá-la. Ela sentou-se à beira dele. Olhou-o nos olhos.

"Lucas", disse, "há quanto tempo morreram o teu pai e o teu irmãozinho?"

"Não quero falar sobre isso", murmurou ele.

"Tens de falar", disse Julia. "Como é que eles morreram?"

"Não quero falar sobre isso", repetiu ele quase inaudivelmente.

"Tu viste?"

Ele não falou. Ela olhou para ele. Aquela qualidade que ele tinha, que ela interpretara como timidez vulnerável... poderia ser outra coisa? Algo mais frio, mais reptiliano? Lembrou-se daquele filme, The Bad Seed. Ou seria The Good Son? Alguém - um dos seus familiares - tinha feito uma piada sobre isso quando ela se tornou professora.

"Lucas", disse Julia, com a voz a prender-se na garganta, "encontraram alguns animais na tua cave. Sabes do que estou a falar?"

Nenhuma resposta.

"Sabes como foram lá parar?"

Nenhuma resposta.

"Tu... puseste-os lá?"

Ele abanou a cabeça lentamente. Ela pegou-lhe no braço. Era fino como um osso.

"Lucas... se não me responderes, não te posso ajudar. Por favor, diz-me a verdade: quem matou os animais na cave?"

Ele apenas olhou para ela.

Irrefletidamente, como que num sonho, ela levantou-se e começou a recuar. Estava vagamente ciente dos cães a ladrar em casa de Elaine, mas depois ficaram ambos em silêncio. O filme, que continuava a dar no portátil, palrava zombeteiramente. Lucas observou-a recuar para a cozinha. Depois virou-se para olhar pela janela, onde caíra a escuridão.

 

*

 

Ela ligou de novo ao Xerife Eastin. Teve de ligar três vezes antes de ele atender, e quando ele o fez, ela conseguiu ouvir gritos no fundo - o género da pessoa era impossível de saber, mas eram gritos de sofrimento recente e devastador. 

"Quem é? Que está a acontecer?", disse Julia sem firmeza, com o pânico a aumentar.

"Menina Grey, tenho de lhe ligar de volta", disse o Xerife roucamente. "Algumas pessoas foram... mortas aqui em Ballard esta noite". A forma como hesitou antes de dizer mortas fez com que parecesse que não tinham apenas sido mortas. Como se algo mais horrível, mais... específico lhes tivesse acontecido. "Acho que talvez... alguma espécie de animal se soltou. E não sabemos onde está agora".

Raiba

Teve uma imagem momentânea de um corpo humano despedaçado, quebrado - tentou torcê-los como toalhas - estendido como um enorme trapo vermelho em farrapos num daqueles relvados verdes bem arranjados em Ballard Creek. 

"Xerife, quero falar consigo sobre o Lucas..."

"Agora não", disse ele distraidamente. "Tranque as portas".

Ela disse: "Já estão trancadas", e depois Eastin desligou.

e tudo o que eles queriam fazer era ir à cidade e comer pessoas

Exceto que talvez ele não tivesse desligado, porque quando ela olhou para o telemóvel, já não tinha rede. Tal como antes, em casa de Lucas. E tal como antes, sentiu um arrepio de pavor, os pelos finos em pé por todo o corpo.

Olhou de novo para Lucas. Continuava a olhar pela janela para a noite, mas agora agarrava a beira do sofá com os nós dos dedos brancos. Se ele fosse um cão, o pelo do dorso estaria eriçado.

"Lucas", sussurrou ela, "para o que estás a olhar?"

Depois começaram os gritos vindos lá de fora.

 

*

 

Vinham da casa de Elaine. O som era tão áspero, tão pouco familiar, que a princípio Julia não percebeu que era Elaine. Começou a dirigir-se para a porta, mas Lucas gritou numa voz aguda: "Não - não vás lá fora!"

Ainda bem que ela hesitou, porque então, na janela, ela viu movimento. Algo no quintal. Lucas também viu e afastou-se da janela.

Havia uma criança lá fora. Apenas uma pequena forma escura, a mover-se de forma estranha na relva. Ela soube de imediato que era a mesma silhueta que vira na janela da casa de Lucas, na forma de um rapaz pequeno. Mas agora conseguia ver que algo lhe crescia do crânio, algo como ramos de árvore nodosos. Chifres, ou hastes. O rapaz-coisa tinha os dedos na boca. Estava a saltitar, como uma rã, na relva escura. Estava a brincar. Nem um pouco incomodado pelos gritos longos e roucos de agonia vindos da outra casa.

"Lucas", sussurrou Julia, paralisada, "quem é aquele?"

"É o Todd".

Ela disse: "O teu irmão Todd está morto".

"Eu sei".

 

*

 

Os gritos de Elaine pararam. Tinham parecido durar uma eternidade, mas provavelmente foram apenas quinze ou vinte segundos.

O pequeno rapaz-coisa no quintal parou de saltitar. Ergueu-se e virou-se na direção da casa grande, e quando o fez, ela teve um vislumbre da sua cara ao luar - branca como cera e estranhamente bulbosa, com grandes olhos fixos, e uma boca molhada que se sugava a si própria como que em busca constante de uma fonte de comida. Depois as sombras voltaram a cobri-la. O vislumbre foi tão chocante, tão bizarro, que ela queria acreditar que o imaginara - que a sua mente o retirara de algum filme de terror que ela vira em garota.

As luzes na casa de Elaine estavam apagadas. Antes tinham estado ligadas. Agora o rapazinho - Todd - olhava para a casa de Elaine enquanto a porta das traseiras se abria e algo - uma escuridão em forma de homem, mas maior do que um homem - emergia.

Julia também a reconheceu. Era a coisa que vira da primeira vez que olhou para dentro da janela entaipada da casa de Lucas. A figura que irradiara tanta malevolência. Aquela que lhe sussurrara.

MAIS UM PASSO

Agora ela conseguia ver que também ele tinha grandes hastes nodosas tipo carvalho. Caminhou para o rapazinho (se é que caminhou era a palavra certa, porque os seus pés não pareciam tocar totalmente no chão) e esticou a mão, e a forma do rapazinho pareceu comer, ou lamber, algo da sua mão. 

Ela não teve de perguntar a Lucas quem era. Ela sabia.

Era Frank Weaver.

 

*

 

Frank e Todd viraram-se para olhar para a casa de campo. As suas caras, indistintas na escuridão, eram grotescamente, quase toscamente maléficas. 

"Lucas", sussurrou ela, "o que é que eles querem?"

Ele falou tão baixo que ela mal conseguiu ouvi-lo.

"Têm fome. Têm sempre fome".

e tudo o que queriam fazer era ir à cidade e comer pessoas

Continuavam parados lá fora no quintal, como estátuas odiosas. Ela percebeu que eles não comiam no sentido normal. Não se alimentavam de carne, não era isso que ele queria dizer. Alimentavam-se de dor.

"O que são eles?", sussurrou ela. "Como ficaram assim?"

"Foi ele", disse Lucas. "Ele fez com que se morressem, ficariam assim..." A sua voz parou. "Ele não sabia que se os seus corpos ficassem na casa, não podiam sair".

"Estavas a alimentá-los, não estavas?", disse ela. "Estavas a mantê-los presos na casa e a alimentá-los".

"Tive de o fazer", sussurrou Lucas.

"E eu soltei-os", disse Julia.

Lucas não respondeu. Ela queria perguntar-lhe porque não a tinha avisado, dito que eles vinham. Mas ela sabia a resposta - não teria feito diferença nenhuma. Ela nunca teria acreditado nele.

Ela disse: "Há alguma coisa que possamos fazer?"

Ele olhou pela janela, com o queixo enrugado. "Eles não gostam da luz", disse. "Mas as luzes vão apagar-se em breve".

As duas figuras no quintal já não estavam quietas.

O rapazinho começou a dirigir-se para a casa de campo, ainda na brincadeira. Deu passos gigantes e exagerados em bicos de pés, como uma personagem de desenhos animados a aproximar-se de alguém de mansinho.

E o homem enorme andou a passos largos - flutuou - atrás dele.

 

*

 

Um pânico de corpo inteiro apoderou-se dela. Uma vez, em criança, ela tinha sido arrastada e enrolada por uma onda na praia. Pareceu durar uma eternidade, e enquanto o seu cérebro gritava por oxigénio e pontos negros inchavam na sua visão, sentira o mesmo pânico: Vou morrer DEMASIADO CEDO. Tipo, AGORA.

Dirigiram-se para a cabana com uma lentidão de pesadelo - a sorrir, a divertirem-se, como uma paródia obscena de um pai e um filho a darem um passeio - e ela sabia que quando alcançassem a casa, a sua vida iria acabar.

"Eu vou com eles", disse Lucas debilmente. "Vieram atrás de mim. Se eu for lá fora, pode ser que eles não..."

"Cala-te", sibilou ela. Estava a tentar pensar. As luzes vão-se apagar. Ela ajoelhou-se e remexeu debaixo da mesa junto da porta da frente - guardava lá uma lanterna.

Uma voz minúscula na sua cabeça gritou-lhe. Manda-o lá para fora! Por amor de Deus, se é ele que eles querem, manda-o lá para fora - e FOGE.

Ignorando-a, ligou a lanterna - uma Maglite pesada e potente com um cabo de metal preto mais comprido que o antebraço dela - quase um segundo antes de as luzes se apagarem. A escuridão avolumou-se sobre eles. O feixe da Maglite balançou descontroladamente, branqueando as paredes e o teto. Ela viu as suas caras maliciosas e impossíveis, subitamente mesmo do lado de fora da janela, encostadas ao vidro, a olharem para dentro. Os olhos tinham pupilas pretas retangulares, como os das cabras. O rapaz balbuciava mudamente, os lábios a moverem-se e franzidos.

Já estariam em cima dela, ela sabia, se não fosse a Maglite - que já começara a tremeluzir...

"DÁ-MO".

Um sussurro... mas parecia fumo ardente contra o seu tímpano, como vapor a envolver-lhe o cérebro. Gritou e recuou - e depois eles já não estavam à janela mas lá dentro, a forma de homem num canto do quarto e a forma de rapaz noutro, a aproximarem-se, e a lanterna morreu e Lucas gritava...

...e Julia estava prestes a gritar na voz de outra pessoa: Levem-no! Deixem-me em paz!...

Faróis reluziram sobre as janelas da frente. Um carro parava lá fora. Frank e Todd já não estavam ali. Uma porta de carro bateu. Passos dirigiram-se à porta da frente.

 

*

 

Julia tentou avisar o rapaz das entregas de pizza, mas ele mal teve tempo de tocar a campainha. Depois duas formas passaram precipitadas pelas janelas da frente e ele também começou a gritar.

Durante um momento ela ficou paralisada. Alguma parte dela - seria mesmo? - estivera prestes a fazê-lo... prestes a entregar Lucas. Uma onda quente de vergonha tomou conta dela. 

Ouviu ossos a partirem-se lá fora - todos ao mesmo tempo, como uma folha de plástico com bolhas a ser torcida - e a paralisia dissolveu-se. Só tinham um momento ou dois.

Puxou Lucas para a cozinha e agarrou uma saladeira de vidro, uma panela de aço, e a caçarola de ferro que usava para cozinhar ovos. Organizou-as no chão de linóleo num triângulo com ela e Lucas no centro. Começou a rasgar jornal e a enchê-las com ele. Depois agarrou alguns fósforos e pegou fogo ao jornal.

"Continua a pôr papel lá dentro", disse ela a Lucas. "Não deixes os fogos apagarem-se". Tinham apenas três jornais - o de hoje, o de ontem, e o de anteontem. Quanto tempo iria isso durar?

Os gritos do rapaz das entregas diminuíram. Os pequenos fogos começaram a subir, com Julia e Lucas encolhidos na sua luz bruxuleante, a alimentá-los. Ela viu a forma escura de Todd a dar cabriolas na sala de estar, como um cão.

Frank apareceu na entrada da cozinha. Lucas agarrou o braço dela. Por um momento, Frank limitou-se a olhar para ela, o fogo a dançar entre eles. A luz brilhava-lhe na cara inchada.

"DÁ-MO", sussurrou Frank.

Uma estranha calma instalou-se sobre ela. O seu cérebro pareceu voltar a entrar naquela nuvem, naquele vapor. Tinha de ser realista. Eles tinham apanhado Elaine e o rapaz das entregas, e também algumas pessoas em Ballard Creek. Tinham-se alimentado. Talvez a deixassem ir se entregasse o rapaz. Podia deixar de ensinar, voltar à escola, fazer outra coisa, viver outra vida. Sim. Primeiro só tinha de sobreviver à noite... e isso significava entregar o rapaz.

"EMPURRA-O PARA FORA DA LUZ".

Ela não se mexeu, mas olhou para Lucas. Não seria difícil, e depois eles iriam embora. A cara obscena de Frank parecia inchar e distorcer-se à luz do fogo.

"DÁ-MO. ELE É MEU FILHO".

Ela colocou uma mão no ombro de Lucas - sentiu a fragilidade dos seus ossos, o calor da sua carne. Lucas olhou para ela. Estava à espera que ela o empurrasse.

Ela olhou para Frank. Enterrou os dedos no ombro de Lucas.

Abanou a cabeça.

 

*

 

No início ninguém reparou quando ela não apareceu na escola. A vila de Rexford estava em choque. Seis pessoas mortas durante a noite, incluindo as duas em Ballard Creek, e outras desaparecidas.

Mas quando o seu colega, Bret Goucher, que dava aulas ao terceiro ano, eventualmente passou pela sua casa de campo para ver dela, nem sequer entrou. O miúdo do Paul's Pizza estava estendido no alpendre. O próprio Paul também lá estava, tendo vindo ver o que acontecera ao seu rapaz das entregas desaparecido. Depois do que lhes tinha sido feito, pareciam mais pizzas feitas vergonhosamente do que pessoas. O Sr. Goucher voltou a entrar no carro e fugiu.

Foi o Xerife Eastin que finalmente encontrou Julia. Estava por todo o chão da cozinha. Estava sozinha.