O Papćo, de Stephen King (1973)
O Papćo, de Stephen King (1973)

 

"Vim ter consigo porque quero contar a minha história", dizia o homem no sofá do Dr. Harper. O homem era Lester Billings de Waterbury, Connecticut. Segundo o historial retirado da Enfermeira Vickers, tinha vinte e oito anos, empregado por uma firma industrial em Nova Iorque, e pai de três filhos. Todos falecidos.

"Não posso ir a um padre porque não sou católico. Não posso ir a um advogado porque não fiz nada para consultar um advogado. Tudo o que fiz foi matar os meus filhos. Um de cada vez. Matei-os a todos."

O Dr. Harper ligou o gravador.

Billings estava deitado direito como uma jarda no sofá. Os seus pés projetavam-se rigidamente sobre a ponta. A imagem de um homem a sofrer humilhação necessária. As mãos estavam dobradas tipo cadáver sobre o peito. A cara estava cuidadosamente imóvel. Olhava para o teto branco simples como se visse cenas e imagens lá representadas.

"Quer dizer que os matou mesmo, ou..."

"Não". Movimento impaciente da mão. "Mas fui responsável. O Denny em 1967. A Shirl em 1971. E o Andy este ano. Quero falar-lhe sobre isso".

O Dr. Harper não disse nada. Pensou que Billings parecia macilento e velho. Tinha o cabelo ralo, a tez pálida. Os seus olhos continham todos os segredos infelizes do whisky.

"Eles foram assassinados, está a ver? Só que ninguém acredita nisso. Se acreditassem, as coisas estariam bem".

"Porquê?"

"Porque..."

Billy deteve-se e levantou-se disparado sobre os cotovelos, olhando para o outro lado da divisão. "Que é aquilo?", berrou. Os seus olhos tinham-se estreitado em ranhuras negras.

"O que é o quê?"

"Aquela porta."

"O armário", disse o Dr. Harper. "Onde penduro o casaco e deixo as galochas".

"Abra-o. Quero ver."

O Dr. Harper levantou-se sem palavras, atravessou a divisão e abriu o armário. No interior, uma gabardina castanho-clara estava pendurada num de quatro ou cinco cabides. Por baixo disso estava um par de galochas brilhantes. O New York Times tinha sido cuidadosamente enfiado numa delas. Era tudo.

"Tudo bem?", disse o Dr. Harper.

"Tudo bem." Billings retirou os apoios dos cotovelos e voltou à posição anterior.

"Estava a dizer", disse o Dr. Harper enquanto voltava para a cadeira, "que se o homicídio dos seus três filhos pudesse ser provado, todos os seus problemas acabariam. Porquê?"

"Iria para a prisão", disse Billings de imediato. "Para o resto da vida. E dá para ver dentro de todos os quartos numa prisão. Todos os quartos." Sorriu para o nada.

"Como é que os seus filhos foram assassinados?"

"Não me tente arrancar isso!"

Billings contorceu-se e olhou funestamente para Harper.

"Eu vou contar-lhe, não se preocupe. Não sou um dos seus anormais a pavonear-se e a fingir ser Napoleão ou a explicar que fiquei viciado em heroína porque a minha mãe não me amava. Sei que não acreditará em mim. Não me interessa. Não importa. Contar será o suficiente".

"Está bem". O Dr. Harper puxou do cachimbo.

"Casei com a Rita em 1965 - eu tinha vinte e um anos e ela tinha dezoito. Estava grávida. Era o Denny." Os seus lábios contorceram-se num sorriso elástico e assustador que se foi num piscar de olhos. "Tive de deixar a faculdade e arranjar um emprego, mas não me importei. Amava-os aos dois. Estávamos muito felizes."

"A Rita engravidou pouco depois de o Denny nascer, e a Shirl chegou em dezembro de 1966. O Andy veio no verão de 1969, e nessa altura o Denny já estava morto. O Andy foi um acidente. Foi o que a Rita disse. Ela dizia que às vezes os contracetivos não funcionam. Eu acho que foi mais do que um acidente. As crianças prendem um homem, sabe. As mulheres gostam disso, especialmente quando o homem é mais inteligente do que elas. Não acha que é verdade?"

Harper grunhiu sem se comprometer.

"Mas não importa. Eu amava-o na mesma." Disse-o quase vingativamente, como se tivesse amado a criança para contrariar a mulher. 

"Quem matou as crianças?", perguntou Harper.

"O papão", respondeu Lester Billings de imediato. "O papão matou-os a todos. Saiu do armário e matou-os." Contorceu-se e sorriu. "Acha que sou louco. Está na sua cara. Mas não me importo. Só quero contar-lhe e depois desaparecer."

"Estou a ouvir", disse Harper.

"Começou quando o Denny tinha quase dois anos e a Shirl era apenas um bebé. Ele começava a chorar quando a Rita o deitava. Tínhamos uma casa com dois quartos, está a ver. A Shirl dormia num berço no nosso quarto. No início pensei que ele chorava porque já não tinha biberão para levar para a cama. A Rita disse para não fazer disso um problema, para não fazer caso, para o deixar chorar e ele esquecia o assunto. Mas é assim que os miúdos começam mal. Somos tolerantes com eles, mimamo-los. Depois partem-nos o coração. Engravidam uma rapariga, sabe, ou começam a chutar droga. Ou viram maricas. Consegue imaginar acordar uma manhã e descobrir que o seu miúdo - o seu filho - é maricas?

"Passado um tempo, no entanto, quando ele não parou, comecei a deitá-lo eu. E se ele não parasse de chorar, eu dava-lhe uma palmada.  Depois a Rita disse que ele dizia "luz" repetidamente. Bem, eu não sabia. Com miúdos tão pequenos, como podemos perceber o que eles estão a dizer? Só uma mãe pode perceber.

"A Rita queria instalar uma luz de presença. Uma daquelas coisas de pôr na tomada com o Rato Mickey ou o Huckleberry Hound ou assim. Eu não a deixei. Se um miúdo não deixa de ter medo do escuro quando é pequeno, nunca deixa.

"De qualquer maneira, ele morreu no verão depois de a Shirl nascer. Deitei-o naquela noite e ele começou logo a chorar. Dessa vez ouvi o que ele disse. Apontou para o armário quando o disse. 'Papão', diz o miúdo. 'Papão, papá'.

"Apaguei a luz e entrei no nosso quarto e perguntei à Rita porque queria ensinar ao miúdo uma palavra dessas. Senti-me tentado a dar-lhe umas chapadas, mas não o fiz. Ela disse que nunca o ensinou a dizer isso. Eu chamei-lhe uma maldita mentirosa.

"Esse foi um verão mau para mim, está a ver. O único emprego que consegui arranjar foi carregar camiões de Pepsi-Cola num armazém, e estava cansado o tempo todo. A Shirl acordava e chorava todas as noites e a Rita pegava nela e fungava. Digo-lhe, às vezes apetecia-me atirá-las às duas de uma janela. Cristo, os miúdos dão consigo em doido às vezes. Era capaz de matá-los.

"Bem, o miúdo acordou-me às três da manhã, mesmo na hora. Fui à casa de banho, apenas um quarto acordado, sabe, e a Rita pediu-me se eu ia ver o Denny. Eu disse-lhe para ir ela e voltei para a cama. Estava quase a dormir quando ela começou a gritar.

"Levantei-me e entrei. O miúdo estava morto de costas. Branco como farinha exceto onde o sangue tinha... tinha caído. Atrás das pernas, na cabeça, nas nádegas. Tinha os olhos abertos. Isso foi o pior, sabe. Esbugalhados e vidrados, como os olhos que se vê numa cabeça de alce que um tipo qualquer pôs por cima da lareira. Como imagens que se vê daqueles miúdos chinocas no Vietname. Mas um miúdo americano não devia ter aquele aspeto. Morto de costas. A usar fraldas e calças de borracha porque se andava a molhar outra vez nas últimas duas semanas. Horrível, eu adorava aquele miúdo."

Billings abanou a cabeça lentamente, depois voltou a apresentar o sorriso elástico e assustador. "A Rita gritava como uma desalmada.

Tentou pegar no Denny e embalá-lo, mas eu não a deixei. A polícia não gosta que se toque em nenhuma das provas. Eu sei isso..."

"Nessa altura sabia que era o Papão?", perguntou o Dr. Harper baixinho.

"Oh, não. Nessa altura não. Mas vi uma coisa. Na altura não me disse nada, mas ficou-me na mente."

"O que era?"

"A porta do armário estava aberta. Não muito. Só uma fresta. Mas eu sabia que a deixei fechada, está a ver. Há sacos da limpeza a seco lá dentro. Um miúdo brinca com um desses e pimba. Asfixia. Sabe isso?"

"Sim. Que aconteceu depois?"

Billings encolheu os ombros. "Enterrámo-lo". Olhou morbidamente para as mãos, que tinham atirado terra para três caixões minúsculos.

"Houve uma investigação?"

"Claro". Os olhos de Billings reluziram com um brilho sardónico.

"Um idiota do interior com um estetoscópio e um saco preto cheio de Junior Mints e um diploma de uma faculdade provinciana. Morte do berço, chamou-lhe! Já ouviu tamanho monte de esterco? O miúdo tinha três anos!"

"A morte do berço é mais comum durante o primeiro ano", disse Harper cuidadosamente, "mas esse diagnóstico foi usado em certidões de óbito para crianças até aos cinco anos por falta de melhor..."

"Tretas!", cuspiu Billings violentamente.

Harper reacendeu o cachimbo.

"Mudámos a Shirl para o antigo quarto do Denny depois do funeral. A Rita lutou com unhas e dentes, mas eu tive a última palavra. Magoou-me, claro que magoou. Jesus, eu adorava ter a miúda connosco. Mas não se pode ser superprotetor. Assim faz-se de um miúdo um inválido. Quando eu era miúdo a minha mãe costumava levar-me à praia e depois gritava até ficar rouca. 'Não vás tão longe! Não vás aí! Tem corrente! Só comeste há uma hora! Não fiques sem pé!' Até para ter cuidado com tubarões. Então o que acontece? Agora nem sequer consigo chegar perto da água. É verdade. Fico com cãibras se me aproximo de uma praia. A Rita convenceu-me a levá-la e aos miúdos a Savin Rock uma vez quando o Denny era vivo. Fiquei doente como um cão. Eu sei, está a ver? Não se pode proteger demais os miúdos. E também não nos podemos mimar. A vida continua. A Shirl foi para o berço do Denny. Mandámos o colchão antigo para a lixeira, no entanto. Não queria que a minha menina ficasse com germes.

"Então passa um ano. E uma noite, quando estou a pôr a Shirl no berço, ela começa a uivar e a gritar e a chorar. 'Papão, papá, papão, papão!'

"Isso fez-me saltar. Foi tal e qual como o Denny. E comecei a lembrar-me da porta do armário, aberta apenas uma fresta quando o encontrámos. Quis levá-la para o nosso quarto nessa noite".

"E levou?"

"Não". Billings olhou as mãos e a sua cara contorceu-se. "Como podia ir ter com a Rita e admitir que estava errado? Tinha de ser forte. Ela foi sempre tão lorpa... veja a facilidade com que foi para a cama comigo quando não éramos casados".

Harper disse, "Por outro lado, veja a facilidade com que foi para a cama com ela".

Billings paralisou no ato de rearranjar as mãos e virou lentamente a cabeça para olhar para Harper. "Está armado em esperto?"

"Na verdade, não", disse Harper.

"Então deixe-me contar à minha maneira", disse Billings rispidamente. "Vim aqui para tirar isto do peito. Para contar a minha história. Não vou falar da minha vida sexual, se é o que espera. Eu e a Rita tínhamos uma vida sexual muito normal, sem nenhuma daquelas coisas porcas. Sei que algumas pessoas gostam de falar disso, mas não sou uma delas."

"Está bem", disse Harper.

"Está bem", ecoou Billings com arrogância desconfortável. Parecia ter perdido a linha de raciocínio, e os seus olhos vaguearam com inquietação para a porta do armário, que estava firmemente fechada.

"Quer que esteja aberta?", perguntou Harper.

"Não!", disse Billings rapidamente. Deu uma risadinha nervosa. "Para que quero olhar para as suas galochas?

"O papão também a apanhou", disse Billings. Esfregou a testa, como que a esboçar memórias. "Um mês depois. Mas aconteceu uma coisa antes disso. Ouvi um barulho lá dentro uma noite. E depois ela gritou. Abri a porta muito rápido - a luz do corredor estava ligada - e... ela estava sentada no berço a chorar e... algo se mexeu. Nas sombras, junto ao armário. Algo deslizou."

"A porta do armário estava aberta?"

"Um pouco. Só uma fresta." Billings lambeu os lábios. "A Shirl estava a gritar sobre o papão. E outra coisa que parecia 'garras'. Só que ela disse 'gáuas', sabe. As crianças têm dificuldade com aquele som do "R". A Rita subiu a correr e perguntou qual era o problema. Eu disse que ela se assustou com as sombras dos ramos a mexerem no teto."

"Armário"?, disse Harper.

"Hã?"

"Armário. Talvez ela estivesse a tentar dizer 'armário'."

"Talvez", disse Billings. "Se calhar era isso. Mas não me parece. Acho que era 'garras'." Os seus olhos começaram de novo a procurar a porta do armário. "Garras, garras compridas." A voz tinha diminuído para um sussurro.

"Viu dentro do armário?"

"S-sim." As mãos de Billings estavam firmemente entrelaçadas sobre o peito, entrelaçadas com firmeza suficiente para mostrar uma lua branca em cada nó do dedo.

"Estava alguma coisa lá dentro? Viu o..."

"Não vi nada!", gritou Billings de repente. E as palavras jorraram, como se uma rolha negra tivesse sido arrancada do fundo da sua alma: "Quando ela morreu, eu encontrei-a, está a ver. E ela estava negra. Toda negra. Engoliu a própria língua e estava negra como um preto num espetáculo de negros e estava a olhar para mim. Os olhos dela pareciam aqueles olhos que se vê nos animais de peluche, todos brilhantes e horríveis, como berlindes vivos, e estavam a dizer 'apanhou-me, papá, deixaste que me apanhasse, mataste-me, ajudaste-o a matar-me'. 

As palavras morreram. Uma única lágrima, muito grande e silenciosa, correu-lhe pelo lado da bochecha.

"Foi uma convulsão cerebral, está a ver? Os miúdos têm-nas às vezes. Um mau sinal do cérebro. Fizeram uma autópsia no Hartford Receiving e disseram-nos que ela sufocou com a língua por causa da convulsão. E eu tive de ir para casa sozinho porque mantiveram a Rita sedada. Ela estava fora de si. Tive de voltar àquela casa completamente sozinho, e eu sei que um miúdo não tem convulsões porque o cérebro avariou. Pode-se assustar um miúdo até ele ter convulsões. E tive de voltar à casa onde ele estava."

Ele sussurrou: "Dormi no sofá. Com a luz acesa."

"Aconteceu alguma coisa?"

"Tive um sonho", disse Billings. "Eu estava num quarto escuro e havia algo que eu não conseguia... não conseguia ver bem, no armário. Fez um barulho... um barulho mole e húmido. Lembrou-me um livro de banda desenhada que li quando era miúdo. Contos da Cripta, lembra-se disso? Cristo! Tinham um tipo chamado Graham Ingles; ele conseguia desenhar todas as coisas horríveis do mundo - e algumas de fora dele. De qualquer maneira, nesta história uma mulher afogava o marido, está a ver? Punha-lhe blocos de cimento nos pés e largava-o numa pedreira. Só que ele voltava. Estava todo podre e preto-esverdeado e os peixes tinham-lhe comido um dos olhos e havia algas no cabelo dele. Ele voltou e matou-a. E quando acordei a meio da noite, pensei que isso iria estar debruçado sobre mim. Com garras... garras compridas."

O Dr. Harper olhou para o relógio digital inserido na sua secretária. Lester Billings estava a falar há quase meia hora. Ele disse: "Quando a sua mulher voltou a casa, qual foi a atitude dela para consigo?"

"Ainda me amava", disse Billings com orgulho. "Ainda queria fazer o que eu lhe mandava. É o dever da esposa, certo? Esta libertação das mulheres só faz pessoas doentes. A coisa mais importante na vida é uma pessoa saber o seu lugar. A sua... a sua... hã..."

"Posição social?"

"É isso!" Billings estalou os dedos. "É exatamente isso. E uma mulher deve obedecer ao marido. Oh, ela andou meia pálida nos primeiros quatro ou cinco meses depois - arrastava-se pela casa, não cantava, não via TV, não se ria. Eu sabia que ela iria superar. Quando são assim tão pequenos, não nos apegamos assim tanto a eles. Passado um tempo temos de ir à gaveta da cómoda e ver uma foto para nos lembrarmos exatamente como eles eram.

"Ela queria outro bebé", acrescentou ele sombriamente. "Eu disse-lhe que era má ideia. Oh, não para sempre, mas por um tempo. Disse-lhe que era uma altura para superarmos as coisas e começarmos a apreciar-nos um ao outro. Nunca tivemos oportunidade de fazer isso antes. Se queria ir ao cinema, tinha de me incomodar à procura de uma babysitter. Não podíamos ir à cidade ver os Mets a não ser que os pais dela ficassem com os miúdos, porque a minha mãe não queria ter nada a ver connosco. O Denny nasceu muito cedo depois de nos casarmos, está a ver? Ela nem sequer veio ao nosso casamento".

Billings tamborilou os dedos no peito.

"O ginecologista da Rita convenceu-a de uma coisa chamada DIU - dispositivo intrauterino. Infalível, disse o médico. Mete-se no... sítio da mulher, e pronto. Se houver algo lá, o óvulo não pode fertilizar. Nem sabemos que lá está." Sorriu para o teto com uma doçura sombria. "Ninguém sabe se está lá ou não. E no ano seguinte ela está grávida outra vez. Mas que infalível."

"Nenhum método contracetivo é perfeito", disse Harper. "A pílula é apenas noventa e oito por cento. O DIU pode ser expelido por cólicas, fluxo menstrual forte, e, em casos excecionais, por evacuação."

"Sim. Ou pode-se tirar."

"É possível."

"Então o que se segue? Ela tricota coisinhas, canta no duche, e come pickles feita louca. Senta-se no meu colo e diz coisas sobre como deve ter sido a vontade de Deus."

"O bebé chegou no fim do ano após a morte da Shirl?"

"Exato. Um menino. Ela chamou-lhe Andrew Lester Billings. Eu não quis ter nada a ver com ele, pelo menos no início. O meu lema era que ela fez asneira, por isso ela que cuidasse dele. Sei como isso soa, mas tem de se lembrar que eu tinha passado por muito.

"Mas afeiçoei-me a ele, sabe? Era o único da ninhada que era parecido comigo, para começar. O Denny era parecido com a mãe, e a Shirl não era parecida com ninguém, exceto talvez a minha Avó Ann. Mas o Andy era a minha cara chapada.

"Eu brincava com ele no parque portátil quando chegava a casa do trabalho. Ele agarrava apenas o meu dedo e sorria e gorgolejava. Nove semanas de idade e o miúdo sorria para o velhote dele. Acredita nisso?"

"Então uma noite, cá estou eu a sair de uma drogaria com um móbile para pendurar sobre o berço do miúdo. Eu! Os miúdos não apreciam presentes até terem idade para dizerem obrigado, esse foi sempre o meu lema. Mas ali estava eu, a comprar-lhe porcarias ridículas e de repente percebo que o amo acima de tudo. Nessa altura tinha outro emprego, bastante bom, a vender brocas para a Cluett and Sons. Saí-me bastante bem, e quando o Andy tinha um ano, mudámo-nos para Waterbury. A casa antiga tinha demasiadas más recordações.

"E demasiados armários.

"Esse ano seguinte foi o melhor para nós. Dava todos os dedos da mão direita para o voltar a ter. Oh, a guerra no Vietname continuava a decorrer, e os hippies continuavam a andar por aí sem roupa, e os pretos fartavam-se de gritar, mas nada disso nos tocou. Estávamos numa rua tranquila com vizinhos simpáticos. Estávamos felizes", resumiu com simplicidade. "Perguntei à Rita uma vez se ela não estava preocupada. Você sabe, o azar vem em grupos de três e isso tudo. Ela disse que para nós não. Disse que o Andy era especial. Disse que Deus tinha desenhado um anel à volta dele."

Billings olhou morbidamente para o teto. 

"O ano passado não foi tão bom. Algo na casa mudou. Comecei a manter as botas no corredor porque já não gostava de abrir a porta do armário. Estava sempre a pensar: E se ele estiver lá dentro? Todo agachado e pronto para saltar no segundo em que eu abrir a porta? E tinha começado a pensar que conseguia ouvir barulhos moles e húmidos, como se algo preto e verde e molhado se movesse um pouco lá dentro.

"A Rita perguntou-me se eu andava a trabalhar demasiado, e eu comecei a falar rudemente para ela, tal como nos velhos tempos. Ficava doente por deixá-los sozinhos para ir trabalhar, mas ficava contente por sair. Deus me ajude, ficava contente por sair. Comecei a pensar, está a ver, que ele nos perdeu durante um tempo quando nos mudámos. Tinha de caçar, esgueirando-se pelas ruas à noite e talvez rastejando nos esgotos. A tentar farejar-nos. Demorou um ano, mas encontrou-nos. Voltou. Quer o Andy e quer-me a mim. Comecei a pensar, talvez se pensarmos numa coisa tempo suficiente, e acreditarmos nela, ela torna-se real. Talvez todos os monstros de que tínhamos medo quando éramos miúdos, o Frankenstein e o Lobisomem e a Múmia, talvez fossem reais. Reais o suficiente para matar os miúdos que se julgava terem caído em saibreiras ou afogado em lagos ou nunca foram encontrados. Talvez..."

"Está a distanciar-se de alguma coisa, Sr. Billings?"

Billings ficou calado durante muito tempo - dois minutos passaram no relógio digital. Depois disse abruptamente: "O Andy morreu em fevereiro. A Rita não estava lá. Ela recebeu uma chamada do pai. A mãe dela tinha tido um acidente no dia a seguir ao Ano Novo e não esperavam que sobrevivesse. Apanhou um autocarro para voltar nessa noite.

"A mãe dela não morreu, mas esteve na lista crítica durante muito tempo - dois meses. Tive uma mulher muito boa que ficou dias com o Andy. Ficávamos em casa à noite. E as portas dos armários estavam sempre a abrir-se."

Billings lambeu os lábios. "O miúdo estava a dormir no quarto comigo. Tem piada. A Rita perguntou-me uma vez quando ele tinha dois anos se eu o queria mudar para outro quarto. Spock ou um desses outros médicos charlatões afirma que é mau para os miúdos dormirem com os pais, está a ver? É suposto dar-lhes traumas sobre sexo e isso tudo. Mas nunca o fazíamos a não ser que o miúdo estivesse a dormir. E eu não queria mudá-lo. Tinha medo, depois do Denny e da Shirl."

"Mas mudou-o, não mudou?", perguntou o Dr. Harper.

"Sim", disse Billings. Fez um sorriso amarelo doentio. "Mudei."

Silêncio outra vez. Billings debateu-se com este.

"Tive de o fazer!", berrou por fim. "Tive de o fazer! Estava tudo bem quando a Rita estava lá, mas quando ela estava fora, ele começou a ficar mais ousado. Começou..." Revirou os olhos para Harper e mostrou os dentes num sorriso selvagem. "Oh, não vai acreditar. Sei o que pensa, só mais um palerma para a sua folha clínica, eu sei isso, mas você não estava lá, seu psiquiatra presumido.

"Uma noite todas as portas da casa se escancararam. Uma manhã levantei-me e encontrei um rasto de lama e sujidade através do corredor entre o armário dos casacos e a porta da frente. Estava a sair? A entrar? Não sei! Perante Jesus, não sei! Os discos todos arranhados e cobertos de lodo, espelhos partidos... e os sons... os sons..."

Passou a mão pelo cabelo. "Acordava às três da manhã e olhava para o escuro e no início dizia: 'É apenas o relógio'. Mas por baixo conseguia ouvir algo a mover-se de forma furtiva. Mas não muito furtiva, porque ele queria que se ouvisse. Um som de deslizar viscoso como algo do ralo da cozinha. Ou um estalido, como garras a serem arrastadas ao de leve sobre o corrimão da escada. E fechava os olhos, sabendo que ouvi-lo era mau, mas se o visse...

"E tinha sempre medo que os barulhos pudessem parar por um bocado, e depois houvesse um riso mesmo por cima da cara e uma lufada de ar como couve velha na cara, e depois mãos na garganta."

Billings estava pálido e tremia.

"Então mudei-o. Sabia que iria atrás dele, está a ver. Porque ele era mais fraco. E foi. Naquela primeira noite, ele gritou a meio da noite e finalmente, quando ganhei tomates para entrar, ele estava de pé na cama e a gritar. 'O papão, papá... papão. Quero ir com o papá, ir com o papá.'"

A voz de Billings tinha-se tornado um soprano agudo, como a de uma criança. Os olhos pareceram encher-lhe o rosto inteiro; quase pareceu encolher no sofá.

"Mas eu não consegui", o soprano infantil quebrado continuou, "não consegui. E uma hora depois houve um grito. Um horrível grito gorgolejante. E soube quanto o amava porque corri, nem sequer acendi a luz, corri, corri, corri, oh, Jesus, Deus, Maria, ele tinha-o; estava a abaná-lo, a abaná-lo tal como um terrier abana um pedaço de pano, e eu consegui ver algo com horríveis ombros caídos e uma cabeça de espantalho e consegui cheirar algo como um rato morto numa garrafa de gasosa e ouvi..."

Diminuiu de intensidade, e depois a voz voltou a um registo adulto. "Ouvi quando o pescoço do Andy se partiu." A voz de Billings estava fria e morta. "Fez um som como gelo a rachar quando se patina num lago campestre no inverno."

"Depois o que aconteceu?"

"Oh, fugi", disse Billings na mesma voz fria e morta. "Fui a um snack-bar que estava aberto toda a noite. Não é de uma cobardia total? Corri até um snack-bar aberto toda a noite e bebi seis chávenas de café. Depois fui para casa. Já era de madrugada. Chamei a polícia até antes de subir. Ele estava estendido no chão e a olhar para mim. A acusar-me. Um bocadinho de sangue tinha escorrido de um ouvido. Apenas uma gota. E a porta do armário estava aberta - mas só uma fresta."

A voz parou. Harper olhou para o relógio digital. Tinham passado cinquenta minutos.

"Marque uma consulta com a enfermeira", disse. "De facto, várias. Terças e quintas?"

"Só vim para contar a minha história", disse Billings. "Para a tirar do peito. Menti à polícia, está a ver? Disse-lhes que o miúdo devia ter tentado sair do berço à noite e... eles engoliram. Claro que engoliram. Era mesmo isso que parecia. Acidental, como os outros. Mas a Rita sabia. A Rita finalmente... soube."

Cobriu os olhos com o braço direito e começou a chorar.

"Sr. Billings, há muito para discutir", disse o Dr. Harper após uma pausa. "Creio que podemos remover alguma da culpa que tem carregado, mas primeiro tem de querer livrar-se dela."

"Não acredita que quero?", chorou Billings, retirando o braço dos olhos. Estavam vermelhos, em sangue, feridos.

"Ainda não", disse Harper baixinho. "Terças e quintas?"

Após um longo silêncio, Billings murmurou: "Maldito psiquiatra. Está bem. Está bem."

"Marque uma consulta com a enfermeira, Sr. Billings. E tenha um bom dia."

Billings riu-se de forma vazia e saiu rapidamente do consultório, sem olhar para trás.

O posto da enfermeira estava vazio. Um pequeno letreiro na pasta da secretária dizia: "Volto Já".

Billings virou-se e voltou a entrar no consultório. "Doutor, a sua enfermeira está..."

A divisão estava vazia.

Mas a porta do armário estava aberta. Só uma fresta.

"Tão bom", disse a voz vinda do armário. "Tão bom". As palavras soavam como se pudessem ter vindo através de uma boca cheia de algas podres.

Billings ficou pregado ao chão enquanto a porta do armário se abria. Sentiu vagamente calor na virilha enquanto se molhava.

"Tão bom", disse o papão enquanto se arrastava para fora. Ainda segurava a máscara do Dr. Harper numa mão podre com garras.